sábado, 20 de novembro de 2010

Remontada

Eram cinco ou seis. Azuis e com as luzes a relampejar, os jipes da polícia relembravam-me por que é eu estava a correr em Xabregas. Com o Parque das Nações reduzido a vinte por cento, a NATO tinha-me atirado pela estrada do porto acima. No escuro das nove da noite, andava a dividir o alcatrão molhado com camiões TIR de 27 toneladas. Bem, dividir talvez seja uma forma exagerada de pôr a situação, pois não tinha mais que metro e meio entre os rodados e o lancil que separava a estrada da linha do comboio.

Mas, como já tinha andado nestas circunstâncias, não chegava a ser motivo de preocupação. Bastava estar atento às luzes que se aproximavam, nunca esquecer de me mostrar visível no escuro e não me desviar de uma imaginária linha recta. Cumpria-se essa cartilha e tudo havia de correr bem. Só que, desta vez, sentia insegurança. Era a terceira vez que me ajoelhava para desapertar os atacadores e para tentar perceber se as palmilhas ortopédicas não me estavam de novo a trilhar os pés. Já havia meses que não treinava com elas e como os ténis ficavam mais molhados a cada minuto, eu não conseguia ter a certeza se aquele resvalar do pé na palmilha não era prenúncio de uma asneira da qual me iria arrepender. Então, parava e ora apertava mais os Pegasus 27, ora os deixava mais soltos. Num treino que já tinha começado debaixo de algum cansaço, toda esta intermitência havia de me fazer demorar um total de 27 minutos para correr uma légua.

Fazer o retorno e impor o regresso a casa foi caso para mais uma chamada de atenção. Estou bem com as rectas, mas fazer curvas mais ou menos apertadas recordou-me que estava no rescaldo de uma entorse. Então curvar para a direita e sentir a pressão sobre o interior do pé direito deixava-me uma certeza: mais 3 ou 4 dias de descanso ter-me-ia posto em melhores condições. Mas, enfim, mudar de faixa tinha os seus upsides. Agora estava a correr junto à Avenida Infante D. Henrique e a luz dos candeeiros alumiava melhor este lado da estrada. As coisas pareciam menos desagradáveis.

E, nunca sabemos de onde vêm estes impulsos, recordei-me de uma fotografia da Jessica Augusto a treinar à neve. Tinha-a visto há horas atrás no Facebook e pensava agora no quanto quem corre gosta de ser testado em condições de adversidade. Às vezes nem tem a ver com o teste, tem a ver com a mera experiência. Tive a suprema felicidade de ter viajado muito na vida e a comunidade de viajantes é outra que vive na cabeça e no peito este conceito de been there, done that. E foi mais ou menos por aí que começou a minha remontada.

Utiliza-se o negative split para definir uma segunda metade de corrida feita em menos tempo. No mundo da bola, por seu turno, fala-se muito em dar a volta ao marcador ou em virar o resultado quando a equipa que perde sacode o jogo e, pelo menos marcando dois golos, passa à situação de vencedora. Já os espanhóis têm uma palavra que sinto particularmente: a remontada.

E nesta semana em que os nossos irmãos ibéricos até parecem muito mais simpáticos (e, decididamente, excelentes fregueses), remontar surge-me como o termo certo. Não é técnico nem estilístico, é como se fosse uma avalancha de emoções que se descobrem do nada ou do muito pouco e que nos salvam ou pelo menos impulsionam para adiante. Certo que isto era um treino e nem sequer um dos mais importantes da semana. Mas eu sou muito sério a treinar. Chego a ser intenso. E tenho dias em que espero que o meu corpo responda à altura, porque a cabeça produz tantas endorfinas que se torna difícil geri-las com moderação.

Se ver a elite trabalhar na neve deu-me a predisposição, então quando chegou a chuva apareceu o meu gatilho. Naquele momento, comecei a correr positivamente sem preocupações. E, com o reflexo das luzes e da água no alcatrão, pus-me a caminho de casa. Ainda havia alguns camiões na estrada com motoristas que tentavam acabar o dia e despachar um jantar tardio. A minha passada era vigorosa enquanto cruzávamos os nossos caminhos.

Mais à frente, ouvi vozes e vi três homens na entrada de um armazém. A porta metálica do armazém estava fechada e dois deles estavam deitados no escuro, entre caixas de cartão desmontadas. O que estava em pé fumava um cigarro e ouvi-o falar: “Ele tem a mania. Qualquer dia baixo-lhe a pavana”. Eles iam dormir ali. Não parei de correr e agora chovia um pouco mais. Não parei de correr.

Com as bátegas de água a molharem-me as lentes dos óculos, tirei o boné de dentro do impermeável e fui avançando a muito bom ritmo. Aos 9k cruzei-me com o único companheiro que também andava por ali a correr. Ele fez um aceno e eu levantei a mão. Então, pela terceira ou quarta vez naquela noite, repeti na minha cabeça as palavras da Rita Borralho – “os braços, Zé, os braços” – e alavanquei-me dali para fora. O pé doía-me um pouco mas eu estava feliz.


Sexta-Feira, 19 de Novembro de 2010


Fotografia de Pedro Moura Pinheiro

Sem comentários:

Enviar um comentário