segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os 104, o comboio e as tigeladas


Não foi boa a noite. A chuva estava fina mas era persistente e chegava acompanhada de um nevoeiro que ainda mais afetava quem vinha de óculos.

Com o percurso deste Trail Abrantes 100 a privilegiar quem se sente confortável a rolar solto, surgiram as primeiras dúvidas: não estaria a andar ligeiro demais para quem iria precisar de pernas para chegar inteiro ao fim dos cento e tal quilómetros? 


Em breve me aperceberia que ter saído num ritmo pouco conservador me tinha colocado numa situação longe de ser a ideal. Estava adiantado em relação ao grosso do pelotão e a fazer sem companhia grandes partes do percurso. 

Companhia essa que tive que procurar logo que o frontal entrou em modo standard e o nevoeiro pareceu ainda mais adensar-se. Nesta altura, estava-se pelo quilómetro 40 e eu via-me a ter que não deixar escapar a luz de uma dupla que seguia à minha frente. Uma má gestão logística punha-me a fazer a corrida a um ritmo que não era o meu. 

Foi providencial a chegada ao K51 e à Zona de Transição 2 na Concavada. Por ali me deixei ficar uns 20 ou 25 minutos. Deu para largar o equipamento molhado e para pôr o GPS e o estômago em refill.       

Apesar do recomeço da chuva, regressei à luta com uma nova leveza anímica. Pela frente estava ainda metade da corrida. E estava um daqueles inesperados encontros em que os trilhos são pródigos. Aqueles que começam com uma palavra solta e que avançam como não se estivesse numa pendente de 18%. Assim foi com o Filipe Leite, um companheiro com quem passei a partilhar a dúbia honra de sermos dos únicos trailers a serem interrompidos no progresso por uma cancela a fechar-se e um comboio a passar.

Até à meta instalada no Estádio Municipal de Abrantes, fomos seguindo a par e passo, um ou o outro a aguentar as despesas da corrida quando um ou o outro passavam por uma fase cinzenta. Fases essas que eram normalmente mitigadas nos extraordinários pontos de abastecimento deste Trail de Abrantes 100. Das tigeladas ao arroz doce, das sandes de presunto às empadas de galinha, não havia limites para a imaginação culinária e para a simpatia dos voluntários. Cinco estrelas em absoluto, neste particular como em toda a organização da prova. 

No res- caldo das 15 horas e 53 mi- nutos, a segunda metade dos 104 quilóme- tros trouxe melhores sensa- ções que as quase sete horas atravessadas  à noite e (pelo menos, desta vez) a chegada aos Três Dígitos não veio ilustrada em cores de extremo sacrifício. E nem as dores no corpo nem as ideias de arrependimento eram suficientes para deixar de ver este Trail Abrantes 100 como provavelmente a mais ajuizada ocasião para entrar nestas batalhas de cem quilómetros.