quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Epilepsia em sapatos de corrida


Como epilético sou do género sossegado. O drama físico de espasmos, convulsões e tremores tem andado longe. O meu perfil é mais do bloqueio, do chilique e, por fim, do desmaio.    

Dois dos meus queridos companheiros da corrida já assistiram ao episódio enquanto treinávamos. O meu irmão já me amparou em dois destes blackouts num trail de 20km (que retomei quando das duas vezes acordei). E, sobretudo, tem acontecido nos meus treinos à porta de casa no Parque das Nações. Já despertei na desarticulada linha dos caminhos-de-ferro do Porto de Lisboa, já despertei num noturno parque de estacionamento, já despertei noutros sítios...

No passado Domingo, enquanto eu fazia os 80k deste AUT, a minha família passava um dia de horário sobressalto, antecipando a probabilidade de acontecer alguma coisa. Alguma coisa é a forma dos meus se referirem a eu me perder num desmaio num sítio qualquer.

Nada aconteceu, mas não tenho a certeza que acreditem. O que sabem e me dizem é que só quem tem problemas na cabeça é que acorda de madrugada para se pôr a correr durante 14 horas. Mas, enfim, está provado que eu tenho problemas na cabeça. Na realidade, a questão é essa. Certo?!

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Arrábida: 80 para 82 para 84



Em Julho inscrevi-me para o Arrábida Ultra Trail. Seria o meu primeiro ultra trail clássico com uma distância de 80k e um desnível positivo de 2.710m.

Na passada semana a organização anunciou que iriam ter que cortar nas subidas. Contudo, para manter o estatuto de corrida qualificativa com 2 pontos para o UTMB, teriam que esticar a distância para os 82k.

Ontem, já de noite e a apenas 8k da meta, tomei inadvertidamente a dança das distâncias nas minhas mãos. Falhada uma viragem, andei às voltas na penumbra da serra. Resultado: juntei mais tempo ao meu cronómetro final e fiz o conta-quilómetros parar ainda mais longe.

Feitas as contas, fechei com 14 horas, 6 minutos e 44 segundos para duas maratonas seguidas (84.530 metros).

Das dores nos quadríceps, da noite na serra e da lama escorregadia não me vou queixar. Ninguém sai incólume de uma ultra. É um esforço violento, mas todos ali disso o sabíamos.

E mesmo naqueles momentos em que tive que me focar para tentar expulsar as dores para um qualquer canto remoto da minha cabeça, não havia lugar diferente onde eu preferisse estar.

sábado, 8 de novembro de 2014

"O meu vizinho é um dos melhores do mundo. E eu também."



Quando em 12 de Agosto de 2012 o mundo ouviu o hino do Uganda a coroar o triunfo de Stephen Kiprotich na Maratona olímpica, o mais lógico seria antecipar no rosto dos dois quenianos que completavam o pódio um sentimento de azedume pela inesperada supremacia da bandeira do país vizinho.

É que nós, ocidentais, temos resistência em entender para lá das bandeiras. Talvez por termos sido nós, ocidentais, que decidimos para África que o conceito geográfico de nação se deveria impor à divisão geográfica por tribos. Não tivéssemos criado essa imposição histórica em nome da colonização e aquele pódio com o ugandês Kiprotich e com os quenianos Kirui e Kipsang seria antes de tudo a celebração da esmagadora superioridade da Grande Tribo Kalenjin.

Kalenjin aqueles três. Kalenjin quase todos aqueles que ganham as longas distâncias em Ljubljana, Portland ou Ras al-Khaimah. Kalenjin aqueles que mereceram de David Epstein, editor senior da Sports Illustrated, uma das mais poderosas e imbatíveis evidências estatísticas que há memória neste mundo da corrida.

Disse Epstein: “se fizermos uma análise dos números, chega a ser risível. Durante toda a história há um registo de 17 norte-americanos a terem conseguido baixar das 2 horas e 10 minutos à maratona. Se pensarmos na tribo Kalenjin, bastou um mês (Outubro de 2011) para essa mesma barreira ter sido quebrada por 32 atletas.”

Descubra aqui porque é que a esmagadora maioria dos melhores maratonistas mundiais vive numa faixa de terreno que se percorre como se fossemos de Óbidos a Elvas.